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Lembrar-me ainda e saber que vou esquecer. Essa é a justificação que dou a mim próprio para escrever estas palavras. Um dia, irei precisar delas para voltar a lembrar-me.(...)

 

José Luis Peixoto in Abraço

calçada Portuguesa

  • Foto do escritor: Ana Calheiros
    Ana Calheiros
  • 3 de mar. de 2021
  • 6 min de leitura

Atualizado: 23 de jun. de 2024

Assim vai a calçada portuguesa pelo Mundo!


Desengane-se quem pensa que ela só está presente em Portugal continental e insular e nos restantes países lusófonos, basta ver a legenda das fotografias para perceber que está noutros lugares, embora, nalguns aparente só semelhanças e não obedeça a todas as características, nomeadamente no material e dimensionamento.


Quanto à origem e execução do memorial a John Lennon, no Central Park, foi gerada uma controvérsia, para uns foi oferecido nem executado por portugueses, para outros foi feito por artesãos italianos e foi um presente da cidade de Nápoles. Na realidade, a dimensão das pedras corresponde mais às de um mosaico estilo italiano que às exigidas para a calçada portuguesa.





No Brasil é classificada como património artístico pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro dedicou mais de um mês em 2015 à calçada portuguesa que teve a colaboração estreita do Museu da Cidade de Lisboa com a cedência e muito material histórico. ver+


A calçada portuguesa bicolor e com padrões, como a conhecemos hoje, só surge no século XIX, como veremos mais adiante, no entanto, documentação existente comprova que, pelo menos desde o reinado de D. João II, a prática de calcetar as ruas era um procedimento comum.


O espírito português, sempre capaz de absorver e adaptar o melhor de outras culturas, está patente na calçada portuguesa que, nas suas origens mais profundas, mistura as influências da cultura árabe nos "arabescos", na leveza do desenho e na exuberância, aliados à técnica, exactidão e rigor dos mosaicos romanos em pavimentos e murais. Acrescentámos, de nosso, um pouco de engenho mas também a durabilidade, com a matéria prima escolhida e, com o tamanho que inflacionámos de 2 por 2 cm para 5 por 5 cm.


É um legado que nos foi deixado, que espalhámos por todo o mundo, é uma técnica difícil que tem que ser perpetuada com incentivos a quem ainda a sabe fazer.



Património Imaterial da Humanidade


Desde 12 de Julho de 2021 que «Arte e Saber-Fazer da Calçada Portuguesa» foi inscrita no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.


Este primeiro passo vai no sentido de avançar com a candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade.



a história


Segundo alguns autores terá sido D. João II que mandou empedrar a Rua Nova da capital, tendo para isso sido celebrados contratos com pescadores da zona de Cascais para o transporte das pedras oriundas de pedreiras junto a essa vila, abertas para esse efeito. Só no reinado de D. Manuel I, trinta anos depois, se concluiu essa obra, ficando a Rua Nova, com os seus duzentos metros, considerada pelos cronistas da época como a mais comercial e internacional das ruas quinhentistas.


São de D. Manuel I, as Cartas Régias de Agosto de 1498 e as posteriores de 1499, 1501 e 1502, que incluem a calçada das ruas num planeamento estruturado para a reconversão ribeirinha e urbana de Lisboa (Paço da Ribeira, Praça do Paço, tercenas Cata-Que-Farás e estaleiros da Ribeira das Naus), detalhando como deverão ser "calçadas" as artérias que envolvem o plano de transformar a zona da Ribeira no núcleo central da sua capital de império.

Da forma como são referidas as determinações "façasse", infere-se que não se trata de uma inovação mas de um procedimento habitual, talvez, até então, não extensível a todas as ruas mas, de qualquer maneira, aparenta ser um procedimento comum.


«Item Façasse a Calçada desde a porta do Paço atee a porta de portagem e nos lugares em que bem parecer sejão feitos degraus para melhor serventia assim como volo fallamos. E (?) junto da alfofa porque esta a sy alta e de mas serviço e ainda dar a calçada ate junto das Casas de Luis Dorta porque aly ao caminho para ficar mais chão como volo dissemos e se para isso cumprir se tomar algum pequeno de chão asi se faça como volo falamos.
Item fasãose logo as calçadas de todas as Ruas que estão descalçadas… item Façase a calçada de S. Francisco e da parte da Barroca seja feito hum piqueno peitoril para mais segurança…»

Miguel Figueira de Faria analizando as cartas régias:

"A carta de Agosto de 1498 situa-se num plano de verdadeira acção programática, assumindo providência para todas as calçadas de Lisboa, acima de interesses de fidalgos e Igreja… «Item quando as obras das calçadas de que dizeis que se agravão… cremos que assim o fação… visto bem todo o como dessa cousa se segue tanta nobreza á cidade e ainda proveito geral a todos principalmente aos fidalgos que tanto dizeis que o agravão…» Desta disposição camarária sobre as calçadas nasce um imposto camarário, chamado “dos carros que carreiram” que chegará até ao século XIX e que dotava a Câmara de meios para fazer face às grandes obras propostas para Lisboa pela Câmara Real”
Miguel Figueira de Faria, in Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio - História de um Espaço Urbano (com transcrições de excertos entre «» da carta régia de D. Manuel I de Agosto de 1498)

O imposto camarário “dos carros que carreiram” prevalecia em 1882, data deste livro:


"O antigo senado administrava e cobrava uma renda que ainda hoje a camará conserva, e que em certa epocha se denominava — dos carros que carreiam na cidade.
Tinha este rendimento exclusiva e natural applicação para as obras das calçadas — «que os carros desconjunctam e destroem.»
D. Manuel, pela carta regia de 20 dagosto de 1498, determinou que continuassem as obras das calçadas, pagando a cidade a mão d'obra, e dando os proprietários de carros as achegas ; não eximindo a nobreza e a clerezia, que haviam levantado grande opposição a contribuir para esse serviço municipal, como se vê de um trecho do dito documento, comquanto, no dizer do mesmo documento, fossem os próprios fidalgos os que mais lucravam com o arranjo das ruas."
Eduardo Freire de Oliveira, in Elementos para a História do Município de Lisboa


A Calçada Portuguesa


Sem provas materiais que o atestem, a calçada seria exclusivamente branca e servia para calcetar as ruas que eram utilizadas por veículos e peões ao mesmo nível, sem passeios.




Na década de quarenta do século XIX o engenheiro e Tenente-General Eusébio Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, apaixonado e profundo conhecedor da arquitectura e arte romana, decide calcetar as calçadas junto ao Castelo de S. Jorge, de que era governador, com calçada mosaico, usando branco e preto em forma de ziguezague.

 

Esta nova calçada não deixou os lisboetas indiferentes, desde logo, dos populares, que aos domingos, em família, vinham expressamente visitá-la tal era a curiosidade que gerou.

 

Face ao interesse demonstrado pelos lisboetas, a Câmara Municipal aprova o projecto do engenheiro Eusébio Furtado para calcetar a Praça do Rossio com o tema "Mar Largo". Assim, em 1848, a área de 8712 m2 da Praça do Rossio é calcetada com a nova calçada portuguesa em 323 dias.


É também por esta altura que é promovida a passeio para peões, distanciando-se uns centímetros em altura do espaço dedicado às escassas viaturas que calcorreavam e atropelavam quem passasse num espaço até então partilhado.


Seguem-se o Largo de Camões em 1867, o Príncipe Real em 1870, a Praça do Município em 1876, o Cais do Sodré em 1877, a Avenida da Liberdade em 1879, o Chiado em 1894 e o Marquês de Pombal em 1908.





Rapidamente se expande a todos os territórios de língua portuguesa e, como referenciado anteriormente, o Brasil adopta-a, como sua, em muitas das suas cidades. Em Macau a tradição também se mantém.





Longe vão os tempos do ingénuo e simples desenho em ziguezague, a mestria ganhou asas e com ela os desenhos ganharam todas as formas imagináveis e, recentemente artistas plásticos de renome (ex. Eduardo Nery na Praça do Município, Martim Moniz, entre outros locais, Abel Manta na Praça dos Restauradores e Vhils com o painel Amália) deram-lhe novas faces, arquitectos nacionais e de outros países utilizam-na nos seus projectos quer em exteriores quer em interiores.




A reabilitação da área onde se encontra hoje o Parque das Nações para a Expo98 associou à calçada portuguesa novos artistas contemporâneos que definitivamente a incluem numa expressão artística e não só uma arte decorativa. Um artigo recente de getLisbon mostra com vista aérea a calçada portuguesa que foi criada para a zona do Parque das Nações e referencia os artistas das obras. Para que não se percam as imagens no efémero acesso a publicações (muitos links perdem a ligação pelas mais diversas razões por ex. feço do site) deixo aqui a cópia de algumas imagens.





Arte e Saber-Fazer da Calçada Portuguesa


Em 1927 existiam na cidade de Lisboa cerca de 400 calceteiros, enquanto em 2020 esse número era de apenas 18, sendo que só 11 estavam no activo.


Só prova que é um trabalho duro, que precisa rapidamente de ser incentivado. Todo o processo que envolve a sua produção desde a extracção da pedra em pedreiras ao seu assentamento/calcetamento é um processo manual e de extrema dureza.



Não basta saber calcetar é necessário saber usar a técnica certa para cada desenho.



Os moldes são fundamentais, anteriormente construídos em madeira, actualmente utiliza-se o ferro e o PVC.







A assinatura na Calçada Portuguesa é um testemunho dos calceteiros-artistas que, tal como uma marca, identifica e personaliza um desenho. As assinaturas são também uma demonstração de orgulho pessoal e de uma forte dedicação à arte de calcetar. As assinaturas na calcetaria são compostas pelo acasalamento de um número reduzido de pequenas pedras talhadas de forma triangular, hexagonal, quadrada, em concha e em pera.
Manual da Calçada Portuguesa ver+ 


Como consequência do reconhecimento da importância da técnica de aplicação da Calçada Portuguesa como manifestação genuinamente nacional, em 1986 foi criada a Escola de Calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa e, em Dezembro de 2006, foi inaugurado um monumento ao calceteiro na Baixa Pombalina.
Manual da Calçada Portuguesa ver+  Artigo sobre escola de caceteiros de Lisboa ver+

na literatura


De tal maneira a calçada portuguesa passou a fazer parte da imagem da cidade e da sua vida diária que ela é referida em inúmeras obras literárias de vários autores, umas vezes com alusões vagas e meramente descritivas outras, como é o caso do poema "cristalizações" de Cesário Verde, ela e os seus calceteiros, representando uma das facetas da vida lisboeta e da dureza de alguns trabalhos que diariamente eram desenvolvidos, são o ponto de partida, em todo o poema, para a análise social que o autor pretendeu fazer.


"Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,

Vibra uma imensa claridade crua.

De cócoras, em linha os calceteiros,

Com lentidão, terrosos e grosseiros,

Calçam de lado a lado a longa rua.

(...)

Bom tempo. Os rapagões, morosos, duros, baços, Cuja coluna nunca se endireita, Partem penedos; cruzam-se estilhaços. Pesam enormemente os grossos maços, Com que outros batem a calçada feita.

(...)

Cesário Verde, "cristalizações" in O Livro de Cesário Verde


 

fonte fotográfica:

Calçada portuguesa em ziguezague. Castelo de São Jorge, (tropa em formatura) século XX. Negativo de gelatina e prata sobre vidro. Fotógrafo: Paulo Guedes (1886-1947) - AML

Âncora 2
legenda pontos sobreLx
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