o mito das 7 colinas de Lisboa
- Ana Calheiros
- 3 de mar. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 26 de jun. de 2024

Georg Braun (1542-1622) e Franz Hogenberg (1535-1590), Lissabon in Civitates Orbis Terrarum (a versão em latim do volume I foi publicada em 1572) Na edição de 1598 surge esta vista de Lisboa, OLISSIPO quae nunc Lisboa civitas amplissima Lusitaniae ad Tagum…com as Armas Reais e as Armas de Lisboa ladeando uma rosa dos ventos e com os edifícios e espaços públicos numerados correspondente a uma legenda na parte inferior (com sobreposição da numeração das colinas).
o mito das 7 colinas de Lisboa
Associado ao mito de Lisboa ter sido fundada por Ulisses, existe também a lenda da origem das sete colinas de Lisboa.

A lenda - Painel de Azulejos, Mestre Lima de Freitas na Estação do Rossio, Lisboa
a lenda
«Diz a lenda que outrora existia aqui um reino chamado Ofiúsa, o reino das serpentes, ao qual veio aportar, com os seus companheiros, o herói e navegador Ulisses. As serpentes tinham a sua rainha, meio mulher, meio serpente, com graças e jeitos de menina, para melhor seduzir. A Ulisses, porém, não o conseguiu ela. O famoso guerreiro fingiu-se enamorado para que a estranha rainha desse modo permitisse que os seus companheiros desembarcassem e se instalassem em terra. Com eles desembarcaram material e ferramenta para começarem a erguer uma cidade. Por fim, realizados os seus intentos, Ulisses iludiu-a e fugiu.
Num grande esforço para alcançar o enganador, a rainha das serpentes quis alongar-se sobre a cidade, até ao mar. E daí ficaram as sete colinas, único resultado das contorções finais da pobre rainha ludibriada.»
Maria da Graça Freire, in O Regresso de Bruno Santiago
Na literatura
Em 1554, Damião de Gois, humanista e diplomata que conviveu com figuras importantes do pensamento da sua época como Erasmo, Lutero e Melanchthon, descreve assim Lisboa atribuindo-lhe cinco colinas: Nossa Senhora do Monte, Castelo, Santana, São Roque e Santos.
«...cinco colinas e outros tantos vales muito férteis e agradáveis, de tal forma que o perímetro global pode ser computado em sete mil passos.»
Damião de Gois, in Elogio da cidade de Lisboa - Urbis Olisiponis Descriptio
Em 1620, a mais antiga referência escritas que se conhece sobre as sete colinas de Lisboa é feita num livro de Frey Nicolao de Oliveira, que as nomeia e descreve com pormenor.
«… Ocupa agora pois esta Cidade em comprimento de Belem até São Bento de Enxebregas, que são quase duas léguas, continuando-se sempre casas e quintas, ficando o meio dela e o a que propriamente chamamos Cidade situada sobre sete montes muy altos, e de muita distancia entre uns, e outros, ela os ocupa todos, não só nos altos deles, mas em todas suas fraldas, e raizes, e valles , como se deixa claramente ver de quem vem do mar, que de terra não havia lugar donde se podia ver mais, que quando muito a terceira parte della.»
Frey Nicolao de Oliveira, in Livro das Grandezas de Lisboa
Terá sido esta definição, aliada ao saber popular fundamentado em lendas, que explica o “mito urbano” enraizado das 7 colinas de Lisboa que, segundo o autor seriam: São Jorge ou Castelo; São Vicente; Santo André; Sant'Ana; São Roque; Chagas e Santa Catarina do Monte Sinay
Os livros: Do Sítio de Lisboa: Diálogos de Luís Mendes de Vasconcelos, publicado em 1608; As Grandezas de Lisboa de Frey Nicolao de Oliveira, publicado em 1620 e Flores de Espanã, Excelências de Portugal de António de Sousa escrito em castelhano e publicado em 1631, têm em comum o facto de terem sido publicados durante o período de dominação espanhola e, o seu conteúdo ser indiscutivelmente um enaltecimento das características da cidade chegando mesmo, no caso de Mendes de Vasconcelos, a lhe serem atribuídas qualidades capazes de a tornarem Caput orbis terrarum (capital do mundo) como cabeça de um Quinto Império (teoria largamente explorada por teóricos e na literatura, mesmo posteriormente a esta época).
A explicação política - Caput orbis terrarum
Durante a ocupação filipina deu-se um enorme incremento da publicação literária quer de livros eruditos ou contemporâneos quer ampliando a publicação de leis, regimentos ou ideias, como forma de angariar apoios e conferir legitimidade ao regime. Sobre este aumento de publicações, durante este período, Camilo Castelo Branco em Curso de Literatura Portuguesa refere que «o período dos “reis intrusos” foi marcado por um incentivo à publicação.»
A ocupação filipina transformou Lisboa numa cidade secundária já que a corte e o rei permaneciam em Espanha. Por essa razão muitos nobres também abandonaram a cidade mudando-se para as suas casas senhoriais na província ou para a corte em Madrid. No entanto, embora Madrid tivesse o estatuto de capital do império desde 1534, só a partir de 1561 a corte se estabelece com mais frequência em Madrid entre estadias, mais ou menos prolongadas entre Valladolid e Toledo, deixando, por isso, em aberto a hipótese da escolha da capital poder recair sobre Lisboa.
Neste contexto, os livros acima referidos, podem ser entendidos como tendo uma clara intensão de levar os Filipes a escolherem Lisboa para sua capital usando a mesma estratégia de marketing que eles próprios tinham largamente utilizado - a publicação literária.
As sete colinas estavam historicamente associadas a capitais Imperiais, como Constantinopla e Roma, era quase uma prerrogativa para uma cidade cabeça de Império e, era uma vantagem inestimável que Madrid não possuía.
Mapa - “Planta da Cidade de Lisboa...1650”. Ass. João N. Tinoco. (Original desaparecido). Cópia de Carvalho Junior; publ. D.G. dos Trabalhos Geodésicos do Reino. 1884, in Silva, Augusto Vieira da Plantas Topográficas de Lisboa. Gabinete de Estudos Olisiponenses.
Mapa - Corte de mapa obtido no site: geo.patrimoniocultural.pt com destaque para a Cerca de Lisboa (Cerca Fernandina, Cerca de D. Dinis e Cerca Moura)
A explicação geográfica
Esta explicação geográfica e científica é bem mais fácil de dar! Três palavras são suficientes - não tinham meios. O próprio Frey Nicolao de Oliveira refere que a sua informação se baseava em "ver de quem vem do mar".
Lisboa em 1620, e como se pode ver pelo mapa de João Nunes Tinoco de 1650, ainda se encontrava cercada pelo que restava da Cerca Fernandina de 1375 mas, pouco mais ia além dos seus limites e, não podemos esquecer que a mobilidade de pessoas e bens dentro da cidade fazia-se a pé, a cavalo ou utilizando carros de tracção animal. Fácil é imaginar que os desníveis prenunciados entre Santa Catarina, S. Roque e Chagas parecessem difíceis de vencer. Outras colinas mais altas que a de S. Jorge foram esquecidas, ou porque não estavam incluídas no perímetro urbano ou porque "vistas de quem vem do mar" ficavam ocultas. Os terramotos de 1531 e de 1755, sabemos hoje, alteraram a morfologia da cidade acentuando ou atenuando desníveis.
A morfologia da Baixa da cidade facilmente explica três colinas já que, o Esteiro e as Ribeiras de Valverde e Arroios indiscutivelmente provocam as colinas de S. Jorge (97 m), de Sant'Ana (64 m) e S. Roque (78 m).
A colina de S. Vicente que o vale de Alfama separa da colina de S. Jorge também é fácil de explicar.
Mais difícil é explicar a divisão da margem oeste do Esteiro em três colinas: Santa Catarina (45 m), S. Roque (78 m) e Chagas (2 pontos mais elevados respectivamente com 35 m e 46 m). Matematicamente a diferenciação de quotas destas três colinas não parece muito relevante mas, na prática e na época, face ao tipo de mobilidade que era possível e por serem zonas densamente povoadas esses desníveis dificultavam a circulação de pessoas e bens na cidade. A atestar essa necessidade, séculos depois, para ajudar a vencer esses desníveis foram construídos 4 quatro ascensores/elevadores: Ascensor da Bica; Ascensor da Glória; elevador da Biblioteca e de Sta. Justa.
Sobre a colina de S. André surge uma divergência quanto à sua localização que, actualmente é assumida como se situando na Graça (83 m) e na Sra do Monte (102m), face à sua descrição feita por Frey Nicolao de Oliveira que a situa entre o Postigo de S. André (ex porta de S. André da Cerca Fernadina, demolida no séc. XX e que se situava no local que corresponderia ao início da Calçada da Graça) e o Chafariz d' el Rey. Ambas as localizações a colocam entre as colinas de S. Jorge e S. Vicente, actualmente situam-na a norte destas, enquanto Frey Nicolao de Oliveira a coloca a sul destas e o seu ponto mais alto corresponderia à actual localização da Igreja de S. Estevão (28 m). Esta "troca/confusão" justifica-se pelo facto da colina da Sra. do Monte ser na realidade a mais elevada na zona do centro da cidade mas, não ser considerada para as 7 colinas de Frey Nicolao de Oliveira, ou por estar oculta de quem "ver de quem vem do mar" ou porque, à época, não estar incluída no perímetro urbano da cerca fernandina, já que o postigo de S. André era um dos pontos mais a norte.
«… A a mão esquerda deste monte em respeito do Occidente, se vay levantando outro monte (que sobe do mesmo sitio, em que o acima fenece) té o postigo Santo André, e costeando o pee do Castello pella parte do Oriente vem a se acabar junto ao chafariz d'el Rey, e como este he mais pequeno naõ o occupaõ mais de tres freguesias, que estaõ postas, e lançadas por suas fraldas e ladeyras, ficandolhe da parte do Oriente a freguesia de Saõ Miguel, e da parte do Occidente Saõ Pedro, fincadolhe mais acima, e quasi no cume a freguesia de Saõ Thomé....»
Frey Nicolao de Oliveira, in Livro das Grandezas de Lisboa.
*(valores das quotas aproximadas, obtidas com o auxílio do Google Earth)
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fotomontagem sobre mapa em: Lisboa Antiga; Bairros Orientais, 2ª ed., vol. I de Júlio Castilho, Lisboa, C.M.L., 1939, p. 275 e ss.. |
As colinas de Lisboa no séc. XXI
Quer tenha sido por razões políticas e de enaltecimento da cidade, quer por deficiência de meios técnicos que se criou este mito, a realidade é que séculos depois ele prevalece em estudos sérios sobre a morfologia da cidade, como por exemplo é o caso do livro escrito pelo padre António Carvalho da Costa publicado em 1712 e oferecido à Rainha consorte D. Marianna de Aústia, mulher de D. José I, Corografia Portugueza, e Descripçam Topografica do Famoso Reyno de Portugal, que transcreve quase na integra as conclusões apresentadas por Frey Nicolao.
Ficando por provar se Frey Nicolao “forçou” a coincidência com as outras cidades imperiais ao atribuir a Lisboa sete colinas, a realidade de hoje é bem diferente (como também o é em Roma ou Constantinopla, hoje Istambul). Lisboa expandiu-se e, ao fazê-lo anexou outras colinas aos seus limites.
Resumirmos Lisboa às 7 colinas de Frey Nicolao de Oliveira seria resumirmos Lisboa à sua dimensão seiscentista não só geográfica como cultural e tecnológica.

Evolução urbana de Lisboa - Crescimento de Lisboa. Séculos XII/XX Gabinete de Estudos Olisiponenses - Mapas do Desenvolvimento Urbano de Lisboa
Hoje facilmente cada um pode escolher quantas colinas tem Lisboa, com meios técnicos disponíveis a todos.

Mapa de Relevo - Relevo – Modelo Digital do Terreno Site CML-Lisboa Interativa